Observadora. Desde criança inquieta, agitada e curiosa. Nunca consegui sentar em algum lugar e ficar quieta, me concentrar apenas em comer ou em ler uma revista quando ao meu lado passam inúmeras pessoas completamente diferentes. Faziam poucos meses que eu havia me mudado, mas a presença dele e dela era constante no meu dia a dia. – Dele e dela para que fique claro que não eram um casal para que eu chamasse de “eles”.
Eu comecei a observar os dois há algumas semanas. Resolvi mudar de mesinha no café, meu ângulo de visão me permitia ver ele ou ela. Dessa vez, sentei em frente aos dois. Eles estavam sentados de costas um para o outro, ela pediu e ele também, quase no mesmo momento. A comida dela chegou primeiro, mas ela estava no celular, então chegou a comida dele. E ao mesmo tempo ambos desenrolaram os talheres do guardanapo e forraram as pernas com o mesmo. Pegaram seus talheres e começaram a cortar seus mistos-quentes, e foi aí que eu percebi o pedido dos dois era o mesmo.
Aos poucos fui criando uma história pra eles, dei nome, sobrenome, endereço, e criei mentalmente várias formas para que eles pudessem se conhecer. Nenhuma acontecia. Todo dia era assim, eles chegavam ao mesmo tempo, ela pela porta de trás, ele pela da frente. Ela virava a esquerda e ia direto para sua mesa, ele virava a direita e seguia reto para a sua. Sentavam sempre um de costas pro outro e repetiam o ritual de alimentação: pedido, guardanapo no colo, talheres, misto-quente, jornal, café, levanta, paga, agradece, e sai. Sempre tão concentrados em suas próprias vidas que nunca pararam para observar o mundo ao redor.
Vidas tão paralelamente idênticas. Eu não podia assistir a isso tudo sem fazer nada. Pensei em como poderia ajudar, queria que os dois se conhecessem. Eu já tinha definido que os dois eram solteiros, moravam sozinhos e talvez fossem de outra cidade. Acho que trabalhavam tanto que mal tinham tempo para viver. Moravam perto, ou talvez o trabalho dele fosse perto da casa dela, ou a casa dele perto do trabalho dela. O fato é que todo dia se encontravam sem se encontrar.
Eu confesso que já tinha deixado meio de lado esse projeto de ajudar os dois. Eu me sinto bem querendo ajudar alguém, mas a verdade é que eu tenho também a minha vida pra cuidar. Saí do trabalho, eram quatro da tarde e segui num engarrafamento sem sentido e chato, se chamava destino. Olhei para o lado direito da rua e o vi, caminhando com um envelope na mão e a bolsa do notebook pendurada nos ombros. Quase não pude acreditar quando do outro lado da rua, estava ela apressada com uma papelada na mão.
Ambos escutavam música em seus mp3. Imaginei que ouviam “To be Surprised” do Sondre Lerche. Ele entrou em um prédio e ela teve que esperar o sinal fechar para atravessar a rua, para a minha surpresa ou confirmação de qualquer coisa, ela entrou no prédio. Eram vizinhos! Será que se conheciam? O fato é que eles tinham muito mais do que o cep em comum. Mal sabia eu que eles moravam um de frente pro outro. Que ele adorava o perfume(dela) que ficava no corredor quando saía pra cafeteria todo dia. Que ela gostava da música do vizinho um pouco mais alta toda segunda de noite, quando a maioria dos vizinhos acabava interfonando pra reclamar. E muitas outras coisas que ninguém sabe direito o que sente, porque sente, nem como sente. É o tipo de coisa que só se sente.
Eu, de algum jeito, sabia que a rotina dos dois era idêntica sem ser compartilhada. Conseguia perfeitamente ver os dois juntos no futuro, eles se mudariam para o apartamento dela, que era mais limpo. Alugariam o dele. Em dois anos chegaria o primeiro filho, isso depois de muitas viagens, cafés da manhã, e muitas outras coisas juntos. Era sábado, um sábado insuportavelmente chato, resolvi que hoje faria alguma coisa por eles já que o roteirista da minha vida tinha tirado férias. Sentei num banco em frente ao prédio deles, não demorou muito para que ele saísse – hoje com uma roupinha casual, camiseta preta, bermuda e tênis.
Eu o segui. Eu sei, é feio, mas me senti bem fazendo isso e fui. Ele entrou em uma loja de CD’s e coisas do gênero. Eu fiz de conta que estava escolhendo alguns CD’s para mim. Acredite se quiser, em menos de cinco minutos ela entrou na loja – de vestidinho azul, sapatilha e cabelo preso num rabo-de-cavalo. Resolvi como ajudaria eles. Tirei uma foto disfarçadamente dos dois, um de frente para o outro, separados apenas por uma prateleira. E fui satisfeita pra casa.
Domingo, não tive notícia de nenhum dos dois, talvez a noitada tenha sido boa demais, talvez não tenham dormido em casa, ou até quem sabe se conheceram num bar qualquer, ele propôs irem ao seu apartamento e sorriram ao descobrir que eram vizinhos? A dúvida me perseguiu até segunda de manhã. Pelo visto, nada tinha acontecido. Estavam os dois, um de costas pro outro, como sempre. Tirei outra foto.
Na volta do trabalho tirei uma foto dele, outra dela, cada um de um lado da rua. Depois tirei outra dele entrando no prédio e dela também. Revelei essas fotos, e separei primeiro as do sábado, uma cópia para cada um em envelopes brancos. Era terça-feira e eu me sentei em outro lugar, tinha chegado mais cedo e mandei o garçom entregar um envelope para cada. Para me deixar mais curiosa ainda, nenhum dos dois abriu o envelope de cara. Continuaram seus rituais matinais. Ao fim, ambos saíram abrindo os envelopes. Merda! Eu ia ter que ver a reação de algum dos dois apenas. Segui ele, pra ver qual seria a reação, para saber se ele iria atrás dela.
Fiquei feliz ao descobrir que mesmo saindo cada um por uma porta acabavam se encontrando na lateral do café para atravessar a rua. Um ao lado do outro, ambos analisando a foto. Foi a primeira vez que eu vi ele olhando ao seu redor. Ele não a notou, ela estava de cabeça baixa, observando a foto. Aproveitei e tirei uma foto meio distante. Comecei a pensar como faria para entregar as próximas fotos. Ao sair do trabalho, colei duas fotos (dos dois no café) na entrada do prédio e cuidei para que ninguém além deles as arrancasse. Percebi que ela estava observando muito, no caminho para casa, olhando para todos os lados. O mesmo acontecia com ele, talvez tenham ficado preocupado por conta das fotos.
Ele chegou antes, viu a foto, pegou uma e olhou ao redor. Nada. Ninguém, aliás, muitos alguém passavam, mas ele não a percebeu do outro lado da rua e entrou no prédio. Ela chegou, pegou a outra foto, e entrou rápido no prédio com uma cara de assustada. Esperei o outro dia e colei novamente na entrada do prédio uma foto de cada, ele de um lado da rua, ela do outro. E coloquei em dois envelopes as fotos deles entrando no prédio e recebendo o primeiro envelope. Voltei a sentar no meu lugar de espectadora.
Como todos os dias eles chegaram, sentaram, e começaram os rituais até o garçom chegar e entregar o novo envelope. Dessa vez, os dois abriram quase que imediatamente. Olharam as fotos e viraram, estavam de frente um pro outro, acho que pela primeira vez. Se olharam, ela ficou desconcertada ao perceber que era ele o homem das fotos e virou de costas de novo. Nesse instante, os dois olharam para mim, que agora me levantava da mesa com um sorriso no rosto.
E eu estava mesmo feliz, saí do café com a sensação de missão cumprida. Eu tinha conseguido fazer os dois se notarem. Se eles iam se conhecer, se apaixonar, ter alguma coisa mais pra frente, não cabia a mim saber ou decidir. Uma coisa eu aprendi: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida”. Sempre achei uma injustiça os desencontros da vida, não consigo ver alguém cabuetando sua própria felicidade sem perceber e me manter alheia. Às vezes a gente só precisa de um empurrãozinho. No meio de tanto desencontro eu proporcionei um encontro. Ninguém passa pela nossa vida sem deixar nada, eu passei pela vida deles deixando qualquer coisa, uma sementinha qualquer. Fiz a minha parte.
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