Páginas

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Nunca está completamente vazio.

Eu entrei no metrô como sempre: agradecendo a Deus por sair tão cedo do trabalho. Sempre pegava o metrô meio vazio e com basicamente as mesmas pessoas. Eu gosto de variar o lugar que sento, dessa vez escolhi qualquer lugar mais pra lá, analisando com o olhar, sorri pra senhora da sacola vermelha. Como eu tinha pouco mais de meia hora até que minha casa chegasse, tirei da bolsa meu ipod e comecei a ouvir Los Hermanos, era só o que eu escutava fazia um tempo. Escolhi o CD ventura e lá me fui ao som de “Samba a dois”.
Na primeira parada entrou um rosto novo naquele horário, naquele metrô. Ele entrou, analisou rapidamente os lugares e sentou ao lado da senhora da bolsa vermelha, desejando a ela uma boa tarde. Não me preocupava que me vissem olhando pra ele, provavelmente ele era mais um dos que pegavam esse metrô quase nunca e sumiam pelo mundo. Mas, ele tinha um rosto familiar, procurei em todas as gavetinhas do departamento de memória do meu cérebro e nada. Eu só fui me dar conta que estava olhando há muito tempo quando ele me olhou, causando aquele desconforto de olhares que se encontram sem querer.
De maneira quase automática desviei o olhar, senti meu estômago estranho, como se dançasse um frevo… era uma coisa que eu não sentia fazia tanto tempo que nem sabia que ainda podia sentir. O carnaval dentro de mim não parava, era tão intenso que o meu medo era transparecer. Não podia ser, todo esse fuzuê aqui dentro e ninguém notar? – O ser humano é um bicho com uma acústica realmente muito boa, grande obra @OCriador. – “Calma, vai passar”! Mentalizei fechando os olhos com força. Todo dia pessoas diferentes das que eu já estou acostumada entram nesse metrô e eu nunca mais vejo. Isso passa.
Foram exatos dois dias até ele aparecer. Carnaval novamente! Ele sentou perto como da outra vez, mas não perto o suficiente para que mantivéssemos uma conversa. A senhora da bolsa vermelha deslizava o olhar de mim para ele, sorrindo descaradamente. Eu como raramente era vista, estava constrangida. Aumentei o volume no meu ipod: “vai Marcelo Camelo, grita pierrot o mais alto que tu puder, até conseguir me desligar do mundo ao redor”. Não funcionou. Peguei meu bloquinho de desenhos e comecei a rabiscar qualquer coisa sem sentido com corações, pássaros e muitas pessoas dentro. A mulher da bolsa vermelha sorria, esticando o pescoço sem nenhuma discrição, para analisar meu desenho.
Foram curiosamente demorados os quatro dias em que ele não apareceu. Dessa vez ele estava mais próximo do que na vez anterior, batucando suavemente na perna, sem provocar nenhum som perceptível, alguma música que estava ouvindo no ipod dele. Tentei imaginar pra onde ele estava indo, podia estar em busca de emprego, os papéis na mão podiam ser o currículo dele. Não, acho que não. As roupas não eram adequadas. Será que é um trabalho de colégio? Colégio? Quantos anos será que ele tem? Pode ser um trabalho de faculdade então. Ele olhou pra mim, olhou mesmo, bem dentro dos meus olhos. Isso não me desconcertou, pelo contrário, provocou um sorriso involuntário. Recebi um sorriso de volta.
A senhora da bolsa vermelha nos observava atentamente. Queria saber o que ela trazia sempre nessa bolsa. Por que não pergunto? Perguntei. Ela disse que eram as réguas dela de costura, ela é costureira. Eu não precisava de um espelho pra saber que meus olhos brilhavam. Eu disse a ela que fazia faculdade de moda, trocamos ainda algumas palavras enquanto o cara nos assistia, eu podia ver pela minha visão panorâmica. Chegou minha hora de descer, eu não queria ir embora, mas fui.
Dessa vez demorou menos, no outro dia ele estava lá. Eu não consegui não mostrar meu alívio por ele não ter sumido, sorrindo. Ele parecia procurar algo com os olhos até parar o olhar em mim, só então escolheu seu lugar e sentou. A maldita costureira tava lá, com um sorriso malicioso expresso apenas no olhar. Eu ignorei o olhar dela, mas não conseguia evitar os encontros dos meus olhares com os dele. Eu não ia perder nada, essa era a hora. Levantei e sentei no lugar vago ao lado dele. Me pronunciei como se já nos conhecêssemos:
- Oi.
– Oi.
– Luciana.
– O quê?
– O meu nome, e o seu?
– Er… Tiago.
– Hm, então Tiago, você gosta de chuva?
– Como que é? Se eu gosto de chuva?(fiz que sim com a cabeça e então ele continuou…) Ah, gosto, mas prefiro frio com sol.
Eu tinha uma necessidade imensa de saber tudo, todas as pequenas coisas que me traziam todo o carnaval. Conversamos sobre chuva, sol, casamento de espanhol, música, trânsito, Power rangers, coca-cola, marca de pasta de dente… enfim, uma variedade enorme de assuntos mais divertidos e estranhos que tudo. Eu tinha que descer, mas, era sexta-feira, fim de tarde… não custava perguntar se ele tinha alguma coisa importante pra fazer. Ele não tinha, chamei ele pra ir comigo.
- Pra onde Luciana?
- Vamo!
E ele veio. Brincou com Malafaias (é o meu cachorro que só atende por “Mala” mesmo) enquanto a gente falava mais sobre assuntos estranhos. Entramos no assunto estampa de sombrinhas sentados no chão e acabamos no sofá falando de marcas de biscoito recheado. Tentamos assistir um filme, mas nenhum dos dois queria parar de falar, desistimos do filme. Sentamos na cama pra jogar uno, eu nem lembro se alguém ganhou, sei que acordamos e morremos de rir no outro dia, ele tinha um seis azul colado na bochecha e eu cartas de todas as cores grudadas no meu braço. Dormimos em cima das cartas, no meio de uma partida. Logo que ele se deu conta da hora disse que tinha que ir. Ao chegar na porta perguntou quando a gente se via de novo, eu só respondi que o futuro ao destino pertencia. Ganhei um beijo e era como se fosse algo que eu esperava. Eu não quis trocar email, nem telefone. Não queria que acabasse na obrigação de ter que ligar, simplesmente porque era isso que se esperava que ele fizesse. Não gosto de coisas pré-determinadas.
Segunda-feira, fim de expediente, só pensava no metrô. Entrei e me sentei analisando cada lugar, ele não estava lá. Pra minha surpresa a costureira veio e se sentou do meu lado. Depois de alguns segundos desconfortáveis com a sensação de que ela estava me observando, ela quebrou o gelo:
- O coração é o metrô!
- Oi?
- O seu coração, ele é como o metrô. Ele é realmente grande, nunca está completamente vazio, tem gente que vai estar sempre dentro, umas novas pessoas vão sempre aparecer: algumas delas tão só de passagem, outras ficam pra sempre. E você queria que ele ficasse. Ele queria ficar. É o tipo de coisa que não se evita, ou controla. No metrô, assim como no coração, você não pode escolher quem entra, nem que lugar essa pessoa vai tomar, está fora de seu controle.
- Ele o que? – me fiz de idiota, não queria falar sobre isso com ela.
- Você sabe do que eu to falando. Só se lembre: o seu coração é o metrô. Você não pode controlar, apenas se permita. Você não determina quem entra nem quando entra ou sai. O fato é que agora ele está dentro.
A costureira levantou e saiu do metrô. Se passou algum tempo e eu quase não notei, perdida nos meus pensamentos. Carnaval! Ele apareceu:
- Que surpresa, você aqui, nessa mesma bat-hora, nesse mesmo bat-local.
- Hahaha, nada previsível.
- Eu sabia que te encontraria aqui. Hoje cedo encontrei aquela mulher que ta sempre por aqui, da bolsa vermelha. Ela me entregou esse papel e pediu pra que da próxima vez que eu te visse eu te entregasse isso, disse que você sabia o que significava.
Abri o papel, eram os meus rabiscos que eu tinha feito no bloquinho de desenhos e tinha deixado cair. Analisei o desenho, o coração grande com várias pessoas dentro, outras fora, uma entrando. E então eu aceitei, ela tinha razão: o metrô é o meu coração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário